O homem no camarote 33 do convés A remexeu-se e virou-se em seu estreito beliche, o rosto suado, a mente mergulhada num pesadelo. Era um homem pequeno, de pouco menos de um metro e sessenta, cabelos brancos ralos e uma face suave, na qual o único traço marcante eram as vastas e escuras sobrancelhas. As mãos estavam enlaçadas sobre o peito e ele torcia os dedos num ritmo nervoso. Aparentava ter cinqüenta e tantos anos. Sua pele tinha a cor e a textura de uma calçada de concreto, e havia rugas profundas debaixo dos olhos. Entretanto, completaria trinta e quatro anos daí a dez dias.
O desgaste físico e a tormenta mental dos últimos cinco meses haviam-no levado a um estado tal que tocava às raias da loucura. Durante as horas em que permanecia acordado, sua mente divagava por caminhos vazios e ele perdia a noção do tempo e da realidade. Precisava esforçar-se a cada instante para lembrar onde se encontrava e que dia era. Estava ficando louco, vagarosa e irremediavelmente louco, e o pior de tudo é que ele tinha conhecimento disso.
Seus olhos se abriram alvoroçados e se fixaram no ventilador silencioso que pendia do teto de seu camarote. Passou as mãos pela face e sentiu a barba de duas semanas. Não foi necessário examinar suas roupas, pois bem sabia que elas estavam sujas, amarrotadas e manchadas por suores conseqüentes de seu estado de nervos. Deveria ter tomado um banho e mudado a roupa logo que embarcou, mas, em vez disso, atirou-se no beliche e dormiu um sono povoado de fantasmas, interrompido por vezes, durante quase três dias.
Era um domingo e a noite ia avançada, e o navio não deveria atracar no cais de Nova York antes de quarta-feira cedo, daí a pouco mais de cinqüenta horas.
O homem procurou convencer-se de que agora estava fora de perigo, mas sua mente se recusava a aceitar tal coisa, embora o prêmio que custou tantas vidas estivesse absolutamente seguro. Pela centésima vez, sentiu o volume no bolso do colete. Satisfeito porque a chave ainda estava lá, esfregou a mão sobre a testa brilhante e fechou os olhos mais uma vez.
Não estava seguro do tempo que se passou enquanto cochilava. Alguma coisa acordou-o com uma sacudidela. Não foi um ruído forte nem um movimento violento, foi antes um tremor de seu colchão e um ruído esquisito como se alguma coisa estivesse sendo triturada em algum ponto por debaixo de seu camarote de boroeste. Ele se ergueu e se sentou numa posição rígida, baixando os pés em direção ao piso. Poucos minutos se passaram e uma calma incomum envolveu o navio, nenhuma vibração se ouviu mais. Então, sua mente anuviada percebeu a razão. As máquinas tinham parado. Ele permaneceu ali sentado, escutando, mas os únicos sons que lhe chegaram foram os leves gracejos dos moços de bordo pelo corredor e a conversa abafada dos camarotes adjacentes.
Uma terrível sensação de desconforto o envolveu. Outro passageiro qualquer poderia ter ignorado a interrupção e voltado a dormir, mas ele estava a um passo de um esgotamento nervoso, e seus cinco sentidos estavam exaltados, aumentando as proporções de cada impressão. Três dias fechado no camarote, sem comer e sem beber, revivendo os horrores dos últimos cinco meses, serviram somente para avivar os fogos da insanidade por trás de sua mente em rápido processo de degeneração.
O homem abriu a porta e caminhou de modo inseguro pelo corredor até a escadaria. Pessoas riam e conversavam ao regressar do salão de estar para seus camarotes. Olhou para o relógio ornamental de bronze, ladeado por duas figuras em baixo-relevo, acima do patamar entre os dois lances da escadaria. Os ponteiros dourados indicavam onze horas e cinqüenta e um minutos.
Um moço de bordo, parado junto a um pomposo candelabro, na base da escadaria, olhou-o desdenhosamente, sem dúvida por ver um passageiro tão mal vestido passeando pelos setores destinados à primeira classe, enquanto todos os outros percorriam os ricos tapetes orientais em elegantes trajes de noite.
- As máquinas - elas pararam - disse, pesadamente.
- Provavelmente para alguma ajustagem de menor importância, cavalheiro - respondeu o moço de bordo. - É um navio novo, fazendo sua primeira viagem, e tudo o mais. É natural que apareçam alguns pequenos contratempos. Nada para causar preocupação. Este navio não pode afundar, como sabemos.
- Uma vez que é feito de aço, ele pode afundar. – O homem esfregou os olhos avermelhados. - Acho que vou dar uma olhada lá fora.
O moço de bordo meneou a cabeça.
- Eu não aconselharia isso, cavalheiro. Lá fora está terrivelmente frio.
O passageiro do terno amarrotado deu de ombros. Estava habituado ao frio. Virou-se, subiu um lance de escada e saiu por uma porta que dava para o convés principal. Quase retrocedeu, pois parecia que mil agulhas o espetavam. Depois de passar três dias no aconchego morno de seu camarote, foi um choque para ele sentir no rosto o ar exterior à temperatura de meio grau abaixo de zero. Não havia o mais leve sinal de vento, apenas uma camada de ar frio, cortante, que descia do céu sem nuvens e envolvia o navio.
Caminhou para a amurada e levantou a gola do casaco.
Debruçou-se, mas apenas avistou o mar negro, calmo como o lago de um jardim. Então, olhou para vante e para ré. O convés principal, desde o passadiço, depois dos camarotes dos oficiais, até a cobertura elevada do salão de fumar da primeira classe, estava totalmente deserto. Somente a fumaça derivando se preguiçosamente das três primeiras chaminés imensas pintadas de preto e amarelo - o navio possuía quatro - e as luzes brilhando através das janelas do salão de estar e de leitura denunciavam a proximidade de vida humana.
A espuma branca ao longo do costado foi diminuindo e se tornou negra à medida que o grande barco, vagarosamente, foi perdendo seguimento e deixando arrastar-se silenciosamente por baixo do imenso manto de estrelas. O comissário de bordo saiu da sala de reunião dos oficiais e olhou sobre a borda.
- Por que paramos? - indagou o homem.
- Batemos em qualquer coisa - respondeu o comissário sem se virar.
- É sério?
- Não é provável, cavalheiro. Se houver algum vazamento, as bombas se encarregarão do assunto.
De repente, um trovejar de rebentar os ouvidos teve início, como se cem locomotivas de Denver e do Rio Grande, ribombando ao mesmo tempo dentro de um túnel, irrompessem dos oito condutos de exaustão. Mesmo quando levou as mãos aos ouvidos, o passageiro reconheceu a causa. Lidara com máquinas por um período suficientemente longo para saber que o vapor estava sendo lançado para o exterior através das válvulas de segurança em virtude do excesso de pressão conseqüente da parada das máquinas principais. O terrível estrondo tornou impossível continuar a conversa com o comissário. Ele se voltou e observou os outros membros da tripulação que apareciam no convés principal. Um medo terrível contraiu seu estômago quando ele os viu começar a descobrir os barcos salva-vidas e desenrolar os cabos dos turcos.
Permaneceu ali por quase uma hora, enquanto o ruído dos condutos de exaustão ia morrendo dentro da noite. Agarrado à amurada, indiferente ao frio, ele quase não notava os pequenos grupos de passageiros que percorriam o convés principal numa estranha e calma forma de confusão.
Um dos jovens oficiais do navio passou por ele. Tinha vinte e poucos anos, e sua face possuía a coloração branco-leitosa tipicamente inglesa, e também tipicamente inglesa era sua expressão de cansado-de-tudo-isso. Ele se aproximou do homem na amurada e bateu no seu ombro.
- Perdão, cavalheiro, mas o senhor deve colocar seu colete salva-vidas.
O homem se voltou vagarosamente e fixou-o.
- Nós vamos afundar, não é mesmo? - perguntou, com voz rouca.
O oficial hesitou um momento, depois assentiu.
- A água está entrando mais rapidamente do que as bombas podem esvaziar.
- Quanto tempo ainda nos resta?
- É difícil dizer. Talvez mais uma hora, se as águas não atingirem as caldeiras.
- Que aconteceu? Não havia outro navio nas proximidades.
Contra o que batemos?
- Contra um iceberg. Cortou nosso casco. Uma falta de sorte danada.
O homem segurou o braço do oficial com tanta força que o rapaz estremeceu.
- Tenho de entrar no compartimento de carga.
- Há pouca possibilidade de conseguir isso, cavalheiro.
O compartimento das malas de correio no convés F está ficando alagado e a bagagem já está flutuando.
- Você precisa conduzir-me até lá.
O oficial tentou desprender o braço, mas ele estava preso como num torno.
- Impossível! Minhas ordens são para cuidar dos barcos salva-vidas de boreste.
- Algum outro oficial poderá cuidar dos barcos – disse o passageiro com voz apagada. - Você vai mostrar-me o caminho para o compartimento de cargas.
Foi então que o oficial percebeu duas coisas incômodas.
A primeira, uma expressão de loucura na face do passageiro, e a segunda, a boca de um revólver fazendo pressão contra seus órgãos genitais.
- Faça como eu pedi - rosnou o homem -, se você deseja conhecer seus netos.
O oficial olhou silenciosamente para a arma e depois levantou os olhos. Alguma coisa dentro dele se alterou repentinamente.
Discutir ou resistir estava fora de cogitação. Os olhos avermelhados pareciam duas brasas alimentadas pelo fogo da insanidade mental.
- Posso apenas tentar.
- Pois então tente! - rosnou o passageiro. - Mas nada de truques. Permanecerei o tempo todo atrás de você. Qualquer gesto idiota de sua parte e eu lhe meto uma bala na espinha.
O homem colocou discretamente o revólver no bolso do casaco, com o cano encostado nas costas do oficial. Caminharam sem dificuldade através da multidão que se acotovelava e que agora punha em desordem o convés principal. O navio parecia outro. Não havia mais risos ou alegria, nem distinção de classes; ricos e pobres estavam ligados pelos laços do medo.
Os moços de bordo eram as únicas pessoas que riam e diziam banalidades, enquanto distribuíam os salva-vidas.
Os foguetes lançados para assinalar o perigo iminente pareciam pequenos e ridículos sob a escuridão sufocante; o espocar dos chuveiros brancos somente era presenciado pelas pessoas a bordo do navio condenado. Tudo isso, aliás, constituía um fundo irreal para os adeuses de partir o coração, as expressões forçadas de esperança nos olhos dos homens ao içarem suas mulheres e seus filhos para dentro dos barcos salva-vidas.
O terrível aspecto irreal da cena foi ainda aumentado quando a orquestra de oito figuras do navio se reuniu no convés principal com seus instrumentos e suas jaquetas claras. Começaram a executar uma música de lrving Berlin, Alexander's ragtime bando.
O oficial de bordo, empurrado pelo revólver, lutou para descer a escada principal contra a onda de passageiros que vinha subindo em busca dos barcos salva-vidas. O pequeno ângulo de inclinação para a proa estava se tornando mais pronunciado.
Ao descerem os degraus, sentiam dificuldade em manter o equilíbrio.
No convés B, apanharam um elevador, em que desceram até o convés D.
O jovem oficial voltou-se e estudou o homem cujo estranho capricho o conduzia, inexoravelmente, a uma morte certa.
Os lábios estavam apertados sobre os dentes, os olhos, vidrados, com um olhar distante. O passageiro levantou os olhos e viu a expressão do oficial que o encarava. Por um longo tempo, ficaram olhando um para o outro.
- Não se preocupe...
- Bigalow, cavalheiro.
- Não se preocupe, Bigalow. Conseguirá safar-se antes que ele afunde.
Que compartimento de carga o senhor deseja?
O cofre no compartimento número 1, convés G.
O convés G com certeza está alagado agora.
Somente poderemos saber quando chegarmos lá, não acha? - O passageiro fez um movimento com o revólver no bolso do casaco no momento em que a porta se abriu. Os dois saíram do elevador e abriram caminho através das pessoas que ali se encontravam.
Bigalow rasgou com um puxão seu cinto de salvamento e correu pela escada de descida para o convés E. Ali, parou e olhou para baixo: a água subia os degraus vagarosamente, mas de forma persistente. Algumas luzes ainda estavam acesas sob a fria água verde e produziam uma claridade fantasmagórica.
- Não vai ser possível. Veja o senhor mesmo.
- Existe algum outro caminho?
- As portas estanques foram fechadas logo após o acidente.
Podemos consegui-lo usando as escadas de emergência.
- Então, vamos a elas.
O percurso através de passagens tortuosas continuou rapidamente por um labirinto sem fim de passagens, escadinhas e túneis. Bigalow fez uma parada e levantou a tampa de uma escotilha redonda. Surpreendentemente, ao olhar pela pequena abertura, verificou que a água no convés de baixo havia subido apenas pouco mais de meio metro.
- Nenhuma esperança - mentiu. - Está alagado.
O passageiro empurrou o oficial para um lado e olhou ele próprio.
- Está suficientemente seco para o que eu desejo - disse, vagarosamente. Apontou o revólver para a escotilha. - Continue.
As luzes do teto continuavam acesas no compartimento, enquanto os dois homens faziam seu caminho, através da água, até a caixa-forte do navio. Os mortiços raios de luz faziam brilhar os metais de um enorme carro Renault preso ao convés.
Ambos os homens tropeçaram e caíram diversas vezes na água gelada, ficando seus corpos dormentes por causa do frio.
Cambaleando como se estivessem embriagados, chegaram por fim ao cofre. Era um cubo no meio do compartimento de carga, com dois metros e quarenta de aresta. Suas poderosas paredes foram construídas com aço de Belfast de trinta centímetros de espessura.
O passageiro retirou do bolso do colete uma chave, que introduziu na fechadura. O sistema de fechamento ainda estava meio duro por ser novo, mas finalmente os ferrolhos cederam produzindo um dique. Ele empurrou a porta e entrou no cofre.
Foi então que o homem se voltou e sorriu pela primeira vez.
- Obrigado pela ajuda, Bigalow. Trate de subir, rápido.
Ainda há tempo para você.
Bigalow olhou, intrigado.
- O senhor vai ficar?
- Sim, vou ficar. Assassinei oito homens bons e decentes.
Não posso continuar vivendo com esse peso. - Isso foi dito com simplicidade e num tom que não admitia réplica. - O assunto está encerrado e completo. Está tudo acabado.
Bigalow tentou falar, mas as palavras lhe faltaram.
O passageiro compreendeu e assentiu, e puxou a porta, que se fechou sobre ele.
- Agradeço a Deus por Southby - disse ainda.
E desapareceu na escuridão do cofre.
Bigalow sobreviveu.
Venceu a corrida contra a água que subia e conseguiu atingir o convés principal e atirar-se pela borda, apenas alguns segundos antes que o navio afundasse.
No momento em que o grande transatlântico afundou, sua flâmula vermelha com a estrela branca, que estivera pendurada no topo do mastro de ré na calma mortal da noite, de repente panejou ao tocar a água, como num cumprimento final aos mil e quinhentos homens, mulheres e crianças que estavam morrendo de frio ou se afogando nas águas geladas do oceano.
Um instinto cego empolgou Bigalow, que estendeu o braço e agarrou a flâmula, quando esta lhe passou ao alcance. Antes que sua mente se desse conta, antes que pudesse pensar em todo o perigo de seu ato louco, ele se sentiu puxado para debaixo da água. Mesmo assim, continuou segurando a flâmula, recusando-se a largá-la. Já estava a quase seis metros abaixo da superfície, quando a alça da flâmula se desprendeu da adriça, e o prêmio era seu. Somente então ele lutou para voltar à tona, em meio à escuridão que o envolvia. Depois do que lhe pareceu uma eternidade, tornou a respirar o ar da noite, feliz porque a esperada sucção resultante do afundamento do navio não o tinha apanhado.
A água, a dois graus abaixo de zero, quase o matou então.
Mais dez minutos àquela temperatura de congelamento, e teriam sido ligeiramente diferentes os números que representaram os resultados daquela catástrofe.
Um cabo o salvou; estava amarrado a um barco virado, e, após correr por sua mão, foi afinal agarrado. Com as últimas forças já o abandonando, Bigalow conseguiu puxar o corpo para cima do barco e compartilhou com outros trinta homens a dormência dolorosa de seus corpos quase congelados, até que foram resgatados por um outro navio quatro horas depois.
Os gritos angustiantes das centenas de pessoas que morreram haveriam de permanecer, para sempre, nas mentes daqueles que sobreviveram. Mas enquanto estava pendurado no barco virado e quase submerso, Bigalow somente se lembrava daquele homem estranho que ficara trancafiado para sempre no cofre do navio.
Quem seria ele?
Quem seriam os oito homens que ele afirmara ter assassinado?
Qual seria o segredo do cofre?
Essas perguntas iriam perseguir Bigalow pelos próximos setenta e seis anos, até poucas horas antes do fim de sua vida.
O resto agora, somente lendo o livro...
8 comentários:
OI ALENCAR...
COMO ASSIM?
SOMENTE LENDO O LIVRO...
NÃO FAZ ISSO COMIGO NÃO...
COMO É O NOME DO LIVRO?
É O TÍTULO DO POST?
DEIXA PRA MIM QUE EU VOU PROCURAR...
PARABÉNS PELA BRILHANTE HISTÓRIA!!!
BEIJOS
ESSE PASSAGEIRO É REAL?
olha so o sumido apareceu hehehh!!! caraca q texto gigante hein cara naum tenho tempo p ler tudo naum mas li por cima parece ser muito interessante, gostei muito da foto nem se fosse verdade né heheheh!!!
uma coisa q eu acho erado no navio desse filme é q o mastro da proa e triplo isso é um erro muito grande eu acho né e na ponta a balaustrada naum é de ferro e preenchido ate a metade deois é q vem a balaustradac de ferro ja era p eu ter comentado com vc antes mas eu sempre esquecia hehhe!!!
ahahah, isso é como tirar doce de uma criança, eheheh. bom post. =]
oi amigo...
valeu sua visita...
vou ver se consigo adquirir esse livro...
beijos
e um excelente fim de semana!
ah esse livro eh massa
a proposito estou relendo a maldiçao do titanic ,mto bom tb
OI...
SAUDADES DE VC ALENCAR...
MINHA VIDA ESTÁ TÃO CORRIDA!!!!
MAS TA BLZ...
AMEI SUA VISITA E O PENSAMENTO...
ADORO SÃO FRANCISCO...
ELE É O SANTO DOS ANIMAIS E EU AMO ANIMAIS...
BEIJOS
TA SEM TEMPO NÉ PRA ATUALIZAR HEHEHE NORMAL EU TE PERDOO HEHEHEH!!!
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